‘Aluno do futuro será um gerenciador de dados e tempo’, diz neurocientista

05 de março de 2020

Atualizado em: 22/12/2023

Neurociência potencializa estratégias e práticas de sala de aula

“Não podemos mais educar as pessoas no mesmo mundo que a gente educava antes. Esse mundo não existe mais. Temos de criar condições para que todos participem dele. Só assim será viável, um lugar possível para todos”, afirma Carla Tieppo, doutora em Neurofarmacologia pela USP. Segundo ela, uma relação mais profunda com a neurociência permitirá um salto qualitativo na educação brasileira. Conhecer o funcionamento do cérebro durante o processo de aprendizagem é uma forma de potencializar estratégias e práticas de sala de aula.

“Educação é potência. Não precisamos mais de conteúdo. Precisamos que os alunos consigam fazer relações complexas entre vários sistemas. E não estamos fazendo, não formamos indivíduos interdisciplinares”, diz.

Carla considera que o papel da escola é promover o desenvolvimento hierárquico das estruturas ou circuitos cerebrais. À medida que aumenta complexidade de uma informação, desenvolve-se a rede neural associada à essa informação. A criança aprende que um objeto se chama caneta, por exemplo. Depois, é apresentada ao lápis. Como são similares, seus circuitos neurais precisam aprender semelhanças e diferenças. Mas há lápis de diferentes cores, marcas, tamanhos. Ao aprender, aumenta a complexidade daquela rede neural.

Como isso funciona com uma ideia abstrata, em uma equação do segundo grau? É necessária a construção adequada dos conceitos de equação, de equação de 1º grau, de duas incógnitas. Isso forma uma rede hierárquica de circuitos cerebrais que ativa esses conceitos com rapidez e eficiência. “Conhecendo todo essa lógica, o papel da escola é propiciar a construção dessas redes de forma organizada. Não adianta falar de coisas mais complexas sem uma base neural necessária para entendê-la”, atesta.

“Os primeiros estudos entre neurociência e o ensino de matemática focaram as disfunções, como discalculia – pessoas não conseguem entender conceitos matemáticos. Centravam-se nos mecanismos do cérebro durante os processos de aprendizagem como a memória e fixação. Só depois, descobriram como a construção visual e a espacialidade estavam envolvidas”, afirma a doutora em Neurofarmacologia da USP.

A neurociência defende que o ensino de matemática deve ter, além de números, imagens, gráficos, algoritmos, tabelas e palavras. E muitas cores. O objetivo é despertar mais conexões cerebrais, mais flexibilidade no pensamento e atingir diferentes áreas do cérebro para ativar a complexa comunicação neural. Quando resolvemos um problema matemático, envolvemos o hipocampo que abriga a memória, as emoções e outras distintas áreas como a simbólica, a espacial e a visual.  “O circuito visual mede a distância e relação de proporção, que são a base da matemática”, define Carla.

Professora Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo há 22 anos, a pesquisadora enfatiza o papel da emoção no aprendizado. “O hipocampo está encravado no sistema emocional. Sem emoções não existe aprendizado. Emoção não é gostar, é valorar, compreender a importância que um evento tem para si mesmo. Com emoção não precisa justificar porque precisa aprender”, comenta. O papel do sistema emocional é criar marcações na memória, através de uma excitação, um medo, uma alegria, o que é muito mais eficiente.

Ela critica o modelo atual baseado na repetição e memorização, que também fortalece um circuito neural, mas de maneira tediosa, e “o tédio é ausência de emoção”. Há um objetivo efêmero, uma prova. Após o teste, não há memória, porque não há emoção. No próximo ano ele dificilmente lembrará o que aprendeu. Ela pergunta quais são as emoções que a escola produzia – e ainda produz. Medo através da punição. Essa é a associação que se constrói com o conhecimento.

Outro aspecto apontado por Carla é o prazer do desafio. Os alunos não são apáticos, querem sempre aprender e estão cheios de confiança e energia, mas voltados aos games e às redes sociais. “A principal emoção dos jogos é vencer os desafios, errando, insistindo. Isso gera engajamento.  Então temos de desafiar os alunos, oferecer um ensino que privilegie as perguntas em vez das respostas.”

Mas, afinal, o que a escola deve ensinar em uma sociedade dominada pela tecnologia e pelas redes sociais – que pendem entre a necessidade e o vício? Para Carla, o futuro aluno é um gerenciador de dados. Não existe mais o “estudante esponja” que apenas absorve. Ele tem acesso a muita informação e ensiná-lo a trabalhar com esses dados, com pensamento crítico, será uma necessidade. Ele não precisa saber os nomes dos afluentes do Rio Amazonas, mas sim qual a importância desses rios para as comunidades ribeirinhas, qual sua relação histórica, política e econômica com a região. Isso leva a um aprendizado de contextos, ao vez de um ensino especializado. “Temos que trocar o microscópio pela grande angular, um ensino generalista e humanizado”.

Outro ponto importante é gerenciar sua atenção, hoje em dia um bem escasso entre os jovens. Saber organizar o tempo e o esforço deveria fazer parte do currículo de uma escola. “Os jovens têm enorme dificuldade de lidar com isso, afinal acreditam que está tudo na ponta dos dedos. Quando surge uma dificuldade faltam recursos emocionais, porque são muito ego-centrados”, diz.

Isso leva a uma outra questão: saber trafegar entre o mundo digital e o real, lidar com as pessoas na internet e pessoalmente. Para as gerações anteriores parece ser uma tema irreal ou menor, mas merecedor de mais pesquisas. Carla acredita que ainda há um longo caminho a percorrer, mas é otimista quanto aos avanços nos estudos sobre a aprendizagem em Matemática. “A neurociência ainda está no seu alvorecer, há muito para conhecer e ser desenvolvido na intersecção com as ciências humanas”, finaliza.


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