Mauren Porciúncula: “O estudante se empolga quando protagoniza o próprio processo de aprendizagem”

14 de setembro de 2023

Atualizado em: 22/12/2023

Mauren Porciúncula tem um extenso currículo acadêmico. Professora da Universidade Federal do Rio Grande, doutora em Informática na Educação, mestre em Engenharia Oceânica, além de licenciada em Matemática. 

Nem toda essa experiência a exime de escutar frequentemente uma frase conhecida por muitos professores: “Matemática não é para mim!”. Escuta que a levou a traçar um objetivo muito bem definido na carreira: o de se aprofundar no processo de aprendizagem para revolucionar a forma de ensinar a matemática.

Ela bateu um papo com o Blog MM sobre a sua relação antiga com a disciplina e sobre suas ferramentas para encantar estudantes. Confira abaixo:

Blog MM: Quem é Mauren, desde antes da matemática?
Mauren Porciúncula
: Eu era uma criança que brincava de matemática e gostava muito de resolução de problemas. Digo que, quando bebê, provavelmente eu ficava numa pracinha olhando as folhas das árvores e comparando os tons de verde, claros e escuros. Gostava de brincar de banco, de dar troco. Minha mãe, pedagoga, ficava me instigando e o meu pai, um sujeito que não tinha muito estudo mas era apaixonado pela matemática, também incentivava. Fui estudante de escola pública e tive professores maravilhosos de matemática. Lembro de um deles que fazia desafios no final das avaliações e do quanto aquilo me provocava, o que é bem parecido com o que vocês fazem no Mentalidades Matemáticas. 

Blog: Você diz que já achava a matemática fácil, atrativa e desafiadora desde bem nova, o que não é muito comum entre os jovens. Como era a sua relação com os seus colegas na época?
Mauren: Eu tinha muitos colegas que gostavam de matemática. Infelizmente, na minha época havia um aspecto que não era nada legal. Às vezes, a escola tinha cinco turmas do mesmo ano e os estudantes que tinham melhor desempenho ficavam nas turmas 1 e 2, e assim sucessivamente até os repetentes, na turma 5. Ainda bem que isso foi superado na educação, porque muitas pessoas deixaram de ser incluídas. O que mais me motivava no primeiro ano da graduação era essa vontade de ajudar o outro. Hoje, questões como a aprendizagem colaborativa e a construção de grupos de estudo avançaram bastante. Naquela época, o processo era muito muito individualizado. Não lembro de construção de grupos para aprendizagem da matemática. 

Mauren Porciúncula: “Se eu não entender como se dá a aprendizagem, farei uma linda palestra, mas o sujeito estará passivo me ouvindo, sem aprender

Blog: Fala um pouco sobre o seu projeto com estudantes em vulnerabilidade.
Mauren: Esse projeto já virou um programa, desenvolvido há mais de dez anos. Começa no meu primeiro ano de graduação, em que íamos, de forma voluntária, atender a estudantes de escola pública, para que aprendessem a matemática. Depois, fui ser professora na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). No meu terceiro ano de formada, comecei a atuar como professora da educação básica e de cursos técnicos profissionalizantes da rede pública. Comecei a atuar na UERGS, onde atendia a pequenos produtores rurais e trabalhava com projetos de extensão para que eles, por meio da matemática financeira, enxergassem o custo da produção do leite e pudessem organizar sua vida a partir disso, por exemplo. Organizamos um curso de inclusão digital no meio rural, e mulheres com pouca escolaridade foram empoderadas por meio da tecnologia. Trabalhei com 700 produtores rurais com projeto de extensão e inclusão, de 2005 a 2009.

Blog: Esse foi o seu doutorado…
Mauren: Sim. O meu campo empírico foi um estudo com 700 produtores rurais, em que eu ajudava-os com a inclusão digital. À época, eram sujeitos que não tinham computador. Promovemos a inclusão digital com cursos para ensiná-los a operar planilhas de cálculo, para fazer controle contábil da produção rural. Aprenderam a olhar a previsão do tempo para um melhor gerenciamento. Trabalhei muito com matemática financeira e tecnologia. O meu doutorado foi em informática na educação. Nele, trabalhei com uma perspectiva piagetiana e estudei a construção do conhecimento dos estudantes. Eu precisava entender como as pessoas aprendem. Fui estudar educação e tecnologia para saber como proporcionar a aprendizagem por meio da tecnologia. Na perspectiva piagetiana, pesquisei como se dá o desenvolvimento cognitivo das pessoas por meio da tecnologia. E, numa perspectiva freiriana, fui estudar os saberes e fazeres docentes. As pessoas sabiam novos aspectos e a partir deles se transformavam num novo fazer. Por exemplo, eu sei ver a previsão do tempo, logo consigo tomar uma decisão a partir disso. Fazendo uma planilha, vou colocar todos os custos de produção e vou gerenciar a propriedade rural. O meu doutorado foi esse estudo freiriano e piagetiano no sentido de entender como funciona a aprendizagem. Se eu não entender como se dá a aprendizagem e o meu processo de ensino não for eficaz, vou fazer uma linda palestra, uma bela fala, mas aquele sujeito vai estar passivo me ouvindo e não estará aprendendo.

Blog: Você chegou à resposta? Como funciona o processo de aprendizagem?
Mauren: Trabalhei com um projeto de aprendizagem. Ele se difere do projeto de ensino na medida que o aprendiz, ou estudante, escolhe o que quer estudar e quais são os seus interesses. O processo de aprendizagem se dá quando o estudante, por algum motivo, tem interesse em aprender. Por exemplo, se ele se interessa por microfones, vai pesquisar a geografia, para saber onde surgiu o primeiro microfone, a história do microfone, a matemática do microfone, e tudo o que está em torno do tema. Então, descobri no meu doutorado que o sujeito aprende se tem interesse, se está motivado e se tem um protagonismo no processo. O professor é um mediador. Seu conhecimento é importante, mas ele precisa saber intervir na hora certa. E escutar para entender o que o estudante efetivamente aprendeu e onde tem dificuldade, para que planeje a próxima aula a partir dela. Esse é o principal achado do meu doutorado. O programa em que atuo hoje, que atende a crianças e jovens em vulnerabilidade, é um projeto de letramento estatístico em que o estudante escolhe a temática que quer pesquisar e vai aprender a partir daquela temática. É uma herança do doutorado nesse projeto que desenvolvo em coletividade. Em dez anos já foram mais de 3 mil jovens atendidos.

Blog: Quais temas os jovens sugeriram para trabalhar?
Mauren: Escolhem as questões mais inusitadas, desde pesquisar sobre animes até outros planetas e galáxias, ou as profissões de familiares. Na pandemia, por exemplo, tinha um jovem que queria saber o quanto a profissão de sua mãe, funcionária da limpeza de um hospital, era valorizada, e foi pesquisar sobre isso. Com isso, ele aprendeu estatística e fez um trabalho interdisciplinar na escola, em que procurou a origem da profissão, se esses profissionais tinham tempo de cuidar da sua saúde – com o professor de educação física – e escreveu um texto sobre isso – junto ao professor de língua portuguesa. Nessa metodologia, o estudante fica empolgado porque protagoniza o próprio processo de aprendizagem. Ele vê que o conteúdo que está aprendendo é útil para a sociedade. Os estudantes dizem coisas como “quero fazer isso sempre na escola”, “quero trabalhar com projetos” e “não quero ir embora”. A escola passa a ser um ambiente acolhedor, lúdico, de contemplação dos interesses e dos contextos de cada um e cada uma.

Blog: Quais foram os resultados práticos do trabalho com os produtores rurais?
Mauren: Vou citar o caso do Seu Geraldo. Ele foi capa do jornal Zero Hora. Por questões éticas, mantemos o anonimato das pessoas nas pesquisas, mas ele foi descortinado porque ficou famoso na imprensa regional. Não havia internet na comunidade em que morava. Ele e os vizinhos se mobilizaram e colocaram uma antena de internet. Compraram um computador e chamaram as crianças das redondezas para ensinar o que estavam aprendendo. Houve toda uma mobilização social para levar a internet para lá. O projeto de aprendizagem dele era sobre parreiras. Era uma região de colonização italiana e eles tinham o hábito de ter parreirais para a produção de uva e vinho, e ele queria pesquisar como melhor produzir. Pesquisou e criou um site com o objetivo de divulgar para outras pessoas o que aprendeu sobre a produção de parreiras.

Mauren Porciúncula: “A educação existe por conta do estudante e o ensino só tem um fim: a aprendizagem

Blog: Com base nos seus estudos, como você vê a relação de tudo isso com a abordagem do MM?
Mauren: O MM é maravilhoso. Primeiro porque parte do pressuposto de que todos podem. Também penso que todos podem aprender matemática. Esse é o meu principal ponto de encontro com o MM. O que nos move é levar a matemática para todos, pesquisar e entender cada vez mais o processo de aprendizagem do estudante para revolucionar a educação no sentido de mudar os métodos de ensino, as estratégias, a sala de aula, inovar…

Blog: Como promover esse encantamento, que você identificou como tão importante para o processo de aprendizagem, ainda no ensino básico?
Mauren: Em primeiro lugar, precisamos promover a equidade. Quem vai à escola bem alimentado, bem vestido, e conta com apoio familiar tem um certo privilégio. Onde trabalhamos, não se abre mão do lanche para as crianças. Inclusive, ele foi antecipado para o início do turno porque quando deixado pro meio ou pro final, algumas pessoas chegavam sem comer. Se o estudante tem fome ou frio, o processo de aprendizagem pode não ocorrer. Já os professores, muitos deles, precisam atuar em três turnos, em escolas diferentes e com uma baixa remuneração. Levam atividades para casa e ficam sem tempo para a família porque passam o final de semana preparando aula e corrigindo atividade. Superadas essas duas questões triviais, conseguimos falar de uma sala de aula não hierarquizada, em que o estudante se sinta o principal sujeito. A educação existe por conta do estudante e o ensino só tem um fim, que é a aprendizagem. Precisamos de estratégias para que haja um processo lúdico, interdisciplinar e contextualizado, de modo que o contexto do estudante esteja presente no universo escolar. Se eu estou numa comunidade rural, pode não fazer sentido falar sobre um shopping center. Para promover o aprendizado, temos que deixar o estudante ser protagonista e ter prazer, entender para que serve o conteúdo que está aprendendo.

Blog: Se um estudante diz que não gosta de matemática e acha que aquilo não é para ele. O que você o diz?
Mauren: Escuto isso todos os dias [risos]. É uma questão de exercício e treino. A pandemia ajudou a mostrar a importância da matemática, porque precisamos entender gráficos e questões como média móvel e percentual de contaminação… Entender que aquele conhecimento é importante para a vida é um ponto de partida. Comparo a neuroplasticidade do cérebro para a aprendizagem da matemática com a atividade física. Na academia, eu não pego todo o peso no primeiro dia, mas evoluo aos poucos. Na primeira vez em que eu fui correr, não completei uma quadra. Hoje, consigo correr 10 quilômetros. Se o estudante gosta de cozinhar, pergunto se deu tudo certo na primeira vez em que tentou e a resposta é negativa. Na matemática, assim como em tudo na vida, precisamos de prática para evoluir e, antes, de uma motivação para começar. Nesse caso, a motivação pode ser entender a utilidade dela.


Mentalidades Matemáticas

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