‘Estamos acostumados a ter sempre as mesmas referências’, diz Nina da Hora

12 de fevereiro de 2021

Atualizado em: 22/12/2023

A desigualdade de gênero nas ciências exatas é uma realidade no Brasil e no mundo. Dados da UNESCO de 2018, mostram que as mulheres pesquisadoras nessas áreas representam apenas 28% do total. Desde 2015, a entidade instituiu o 11 de fevereiro como o Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência com o objetivo de incentivar ações e ampliar o debate sobre a igualdade de gênero.

Essa falta de diversidade dentro de uma área vista como tipicamente masculina pode ser explicada por diversas questões, incluindo os estereótipos, o preconceito e o baixo incentivo às meninas e às mulheres, tanto em casa quanto na escola. 

Felizmente, há muitas mulheres que lutam pela equidade de gênero, e que buscam incentivar outras meninas a seguirem o mesmo caminho, apesar das adversidades. Uma delas é a divulgadora científica Ana Carolina da Hora, conhecida como Nina da Hora, engajada nas redes sociais quanto à inclusão de mulheres negras nesse campo.  

Aluna do curso de Ciência da Computação da PUC-Rio e colunista da publicação MIT Technology Review Brasil, Nina conversou com o Mentalidades Matemáticas sobre a sua trajetória, as suas referências e a importância de discutir boas práticas de inserção de mulheres na área de ciências exatas. 

MM: Como é ser uma porta-voz de na busca pela equidade de raça e gênero no campo da computação e o que te motivou a lutar pelas causas?

Nina da Hora: Não me vejo muito como porta-voz. Me vejo como uma pessoa que, a partir do que eu consegui conquistar, faz com que outras meninas negras se sintam à vontade para falar sobre experiências na área. Algo que carrego muito é que nunca tive uma professora negra de matemática ou de computação. Vejo que muitas universidades americanas têm mulheres negras sendo coordenadoras dos cursos, o que não acontece no Brasil. Sinto muita falta disso nas universidades, nas escolas. Isso poderia fazer uma diferença. Muitas pessoas negras começam o curso de matemática e desistem, porque começam a ter dificuldades com a própria matemática e também com o ambiente. Não se sentem com capacidade suficiente para estar ali, nem têm o acolhimento necessário para vencer obstáculos. Por isso, é importante ter uma referência para perceber que aquele lugar, aquele espaço foram ocupados por aquela referência. E ver que ela está abrindo as portas para nós, mas que precisamos ver formas de acolhimento para que as portas se mantenham abertas. Muitos estudantes acabam buscando outras áreas até por falta desse acolhimento. 

MM: Quando você optou pela ciência da computação, você teve incentivo em casa e na escola? 

NH: Sim, nos dois ambientes. Minha mãe, minha avó, minhas tias são da área de educação. Elas não são da área de exatas, mas sempre me incentivaram. Eu sempre gostei dessa área. Não tive computador, como os jovens de hoje têm, mas eu lia muitos livros. Lembro de um livro que me marcou muito, o “Homem que Calculava”, de Malba Tahan. Com ele, percebi a matemática para além de cálculos. Lembro que livros e pessoas sempre me marcaram e me incentivaram muito. Perto de prestar o ENEM, o meu professor de matemática me doou oito livros para eu estudar, e até hoje mantemos contato. Felizmente, tive muitos professores que me acompanham até hoje. Eu vejo que não tenho do que reclamar, porque sempre fui muito incentivada de diferentes formas – não diretamente com jogos de montar ou com jogos de computador, mas sim, e principalmente, com livros. 

MM: Na sua opinião, por que existe a falta de equidade de gênero e de raça nas áreas de matemática e de ciências exatas? 

NH: O ensino de matemática costuma partir de um ponto de vista muito europeu. Por exemplo: Pitágoras e Euclides são sempre citados no ensino fundamental e médio. Mas no ponto de vista racial, falta resgatar uma história de contribuição vinda do continente africano, da Índia e dos indígenas brasileiros. Quando você não percebe isso, torna-se normal estar em uma área como essa e não questionar essas coisas. É a mesma coisa em relação à falta de equidade de gênero. Geralmente, a única mulher cientista citada na escola é a Marie Curie. Eu pensava: “não é possível que não tenha outras cientistas mulheres, ou cientistas negras”. Então, você se acostuma a ter sempre as mesmas referências. Tem uma parte da matemática que se chama Etnomatemática, que a estuda como um objeto da natureza e da cultura, sob um ponto de vista socioeconômico. Isso é o que deveríamos estar fazendo, para que as pessoas vejam a importância da matemática no dia a dia. 

MM: Quais são os desafios que você enfrenta na área por ser mulher? 

NH: Os questionamentos. Se eu falo que gosto ou que estudo alguma coisa, preciso falar um livro para a pessoa acreditar que eu sou daquela área. Isso acontece em qualquer área com as mulheres. Também há outros desafios, como a falta de representatividade de referências, e a naturalização de piadas racistas e machistas. Quando você levanta a questão, você é vista como uma pessoa negativa naquele ambiente. As pessoas que estão sendo machistas e racistas não são vistas como tóxicas, mas a pessoa que está questionando aquilo é? Então essa ainda é uma dificuldade. Em muitos momentos, eu prefiro ficar calada, e depois não frequento mais aquele ambiente. 

MM: De que forma a sociedade pode buscar novas ações para promover essa inclusão de gênero e de raça? 

NH: Uma coisa legal que tenho visto são professores se movimentando e ajudando a engajar meninas na universidade e até mesmo alunas do ensino médio. Eu participei de um evento do Grupo Motirõ, que é formado por alunas que participaram de atividades na Fiocruz voltadas para o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência de 2020. Também tive a oportunidade de participar, na PUC-Rio, de uma palestra com uma ex-aluna da universidade, que hoje trabalha na Microsoft. O evento, que aconteceu antes da pandemia de Covid-19, foi aberto só para as mulheres do curso de Ciência da Computação. Foi um momento super legal, e isso uniu mais as meninas do curso. Vejo alguns projetos muito legais, como o Meninas da Ciência e o Meninas Digitais, mas ainda penso que deveriam existir projetos dentro da esfera pública para ajudar a melhorar essa inserção de mulheres e de pessoas negras dentro da área de computação. No mercado de trabalho, vejo que os programas de treinamento para mulheres na área de tecnologia estão em alta. Ano passado, vi muitas empresas fazendo isso e se posicionando dessa forma. 

MM: Qual é a importância de uma data como o Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência para o Brasil e para o mundo? 

NH: Para o Brasil, é uma oportunidade de conhecer grandes referências que ainda não são muito conhecidas ou faladas. Para o mundo, eu vejo como uma forma de unir mais as mulheres. Uma data como essa traz a oportunidade de parar e de pensar melhor sobre essa questão. De alguma forma, acredito que isso conecta as mulheres que querem estar nessa área e as que já fazem parte dela. Acredito muito na conexão entre as pessoas a partir da informação. 

MM: Quais são as suas referências femininas dentro da área de matemática e de ciências exatas?

NH: Tem uma cientista, em especial, a Katherine Johnson, que foi matemática da NASA. Quando pesquisei sobre ela, estava com dificuldade em geometria analítica. Na escola, não conhecemos essa separação, não temos noção do nome de cada área. Também tem a Enedina Alves Marques, que foi a primeira mulher negra a se formar em Engenharia no Brasil, em 1945, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Além delas, tenho outras referências dentro do Departamento de Informática da PUC-Rio, onde estudo. Eu faço questão de citar pessoas próximas, para as meninas entenderem como faz diferença prestar atenção em quem está ao nosso redor, pois tem muita gente que só tem referências lá de fora e não conseguem visualizar o que tem aqui dentro, e tão perto. Uma referência do Departamento de Informática é a professora Clarisse de Souza, hoje professora emérita e uma das pioneiras da área de Interação Humano-Computador no Brasil. Acho muito interessante o fato de ela ter se formado em Letras, mas ter migrado para a área de computação e ciências exatas, pois isso quebra o argumento de que não é possível se interessar por duas áreas diferentes. E as contribuições que ela fez e faz são muito conectadas com os problemas da sociedade, então a admiro muito como cientista e mulher. Outra inspiração da faculdade é a professora Ana Lucia de Moura. Para mim, ela é uma grande referência sobre como ser professora, pois ela teve um grande cuidado em ajudar a gente a pensar e a estudar. Também destaco a professora e coordenadora da graduação, Noemi Rodriguez, que nos incentiva e entende as nossas questões. Também tenho outras referências que não são da área de matemática, mas de física: a professora Katemari Rosa, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e a professora Sonia Guimarães, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). 

Crédito da foto de capa: Filipe Costa / divulgação: Instituto Serrapilheira

Mentalidades Matemáticas

    Cadastre-se para aproveitar todos os nossos conteúdos gratuitos!

    *Ao preencher o formulário, concordo em receber comunicações de acordo com meus interesses e afirmo estar de acordo com a Política de Privacidade.
    **Você poderá alterar suas permissões de comunicação a qualquer tempo.
    Prometemos não utilizar suas informações de contato para enviar qualquer tipo de SPAM.

    Mentalidades Matemáticas

      Cadastre-se para aproveitar todos os nossos conteúdos gratuitos!

      *Ao preencher o formulário, concordo em receber comunicações de acordo com meus interesses e afirmo estar de acordo com a Política de Privacidade.
      **Você poderá alterar suas permissões de comunicação a qualquer tempo.
      Prometemos não utilizar suas informações de contato para enviar qualquer tipo de SPAM.

      Mentalidades Matemáticas

        Cadastre-se para aproveitar todos os nossos conteúdos gratuitos!

        *Ao preencher o formulário, concordo em receber comunicações de acordo com meus interesses e afirmo estar de acordo com a Política de Privacidade.
        **Você poderá alterar suas permissões de comunicação a qualquer tempo.
        Prometemos não utilizar suas informações de contato para enviar qualquer tipo de SPAM.